terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

espelho meu, espelho meu


Passaram-se sessenta anos, eu já não sou eu, sou alguém, um outro alguém.
Não me lembro do que mais gostava de fazer, não me lembro das melodias que me adormeciam o coração ou das pessoas que durante tanto tempo mo aqueceram.
Não me consigo lembrar do que me arrepiava a pele, não me lembro do que despertava em mim aqueles intensos e autênticos calafrios que tanta vivacidade me faziam sentir nas veias. Todas aquelas recordações que tanto fiz questão de guardar para mais tarde (re)lembrar, aquelas que apenas o peito sabe guardar. Foram para tão fundo, ficaram tão escondidas, tão invisíveis e despercebidas que não as vejo, não me adoçam a memória. Provavelmente foi isso.
As que, antes, eram as minha leis de sobrevivência, todo aquele complexo conjunto de valores, rotinas, gostos e até sabores já nada me dizem, como duas pessoas que se esbarram na rua, casualmente, e não se apercebem de quem são ou das complexas histórias que partilham. Já não respiro com as mesmas pessoas ou os mesmo sentimentos. Pois bem, com o tempo e alguma erosão tudo se foi, varreu-se, como quem varre o pó para debaixo de um tapete para não se ver, não se notar ou sentir e tão pouco cheirar. Mas bem lá no fundo isto é uma sacanagem, uma desculpa fácil e ordinária para esquecer e explusar tudo o que trazia dor só de lembrar, puro comudismo, enfim, pontos fracos.
Não fui capaz de cumprir os milhões de promessas que fiz, a todos aqueles milhões de pessoas a quem jurei uma vida, comum, não fui capaz de as aprender, aprender a minha vida com elas, não soube cuidar, não cheguei a aprender a habituar-me e a gostar.
Fois mais fácil quebrar aquela ciclicidade, entrar numa outra sem rotinas (ou ciclos), sem pessoas (as minhas pessoas), sem confianças ou expectativas para depositar.
Talvez tenha sido por essa mesma razão que acabei assim, numa casa que não a minha, onde outros tantos estranhos partilham a vida, os quartos, os hábitos, as rotinas, os sentimentos, os sonhos (de há uma vida) e umas outras tantas coisas como se o mundo fosse acabar a qualquer instante e tudo o que viesse à cabeça fosse uma fita de cassete a produzir e reproduzir. Sem vergonhas ou pudores assemelham-se a livros abertos prontos a ser virados e revirados, mexidos e remexidos, com um pequeno toque de ternura e um toque de mesquinhice e, talvez até, morbidez.
E se passarem uns tantos anos e tudo se tornar assim?

Sem comentários:

Enviar um comentário